Questões Contemporâneas


“COMO FICOU CHATO SER MODERNA, SEREI ETERNA”:
LYGIA FAGUNDES TELLES, O FEMINISMO E A ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS



Introdução

Na tarde de 20 de julho de 1897 foi fundada a Academia Brasileira de Letras. O escritor Machado de Assis, um mestiço meio gago e pobre, o menino do Morro do Livramento que vendia caramelos num tabuleiro, era agora aquele homem de pince-nez e colarinho duro, o primeiro presidente dessa Academia. Casado com a bem-amada Carolina, uma portuguesa, moravam numa espaçosa casa na Rua Cosme Velho. Fico me perguntando se ela estaria nessa reunião que ele presidiu (TELLES, 2007: 31, destaques nossos).

Com esta aparentemente ‘despretensiosa indagação’, Lygia Fagundes Telles inaugura o conto Machado de Assis, que integra o volume Conspiração de nuvens. A provocação da escritora faz ecoar, por traz da dúvida levantada, uma certeza: ainda que tivesse estado presente na cerimônia de abertura da Academia Brasileira de Letras, a participação de Carolina Augusta Xavier de Novaes naquele cenáculo não teria sido outra, senão a de espectadora. A percepção da escritora revela sua profunda sensibilidade em relação à ausência feminina (ou presença apenas ornamental) nas agremiações literárias que, durante muito tempo, encontrou sustentação em um repertório de discursos com teor positivista e determinista que postulava a inferioridade das capacidades intelectuais das mulheres em relação às dos homens (SIMIONI, 2008). Tais arbitrariedades tiveram como consequência não apenas a tardia alfabetização feminina, mas sua difícil profissionalização e reconhecimento literários. A esse respeito, a própria Lygia Fagundes Telles ressalta que a mulher brasileira aprendeu a ler e a escrever muito tarde e mesmo depois disso continuou aprisionada, vigiada. Minhas antepassadas escreviam versos nos cadernos de receitas, de compras do dia: dois quilos de cebola, duas caixas de sabão e vinha um verso, um sonho, um devaneio. A mulher brasileira seguia a tradição portuguesa, quer dizer, completamente dentro do espartilho (1998: 39).

Lygia Fagundes Telles foi a terceira escritora a integrar a Academia Brasileira de Letras, e seu ingresso não veio desacompanhado de uma profunda consciência, revelada pela escritora, acerca do significado histórico da presença feminina em agremiações do gênero, para uma sociedade com pronunciado lastro “androcêntrico”. Aliás, a rigidez do “espartilho”, que tolheu por tantos séculos as investidas profissionais femininas, foi sentida pela escritora em sua própria trajetória pessoal, que a ela reagiu de maneira audaciosa, tal como atestam suas escolhas acadêmicas e profissionais: Lygia Fagundes concluiu dois cursos superiores considerados, à época, ‘tipicamente masculinos’, quais sejam, a faculdade de Educação Física, em 1943, cursada na Escola Superior de Educação Física de São Paulo, e o bacharelado em Direito, em 1946, realizado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Para se ter uma idéia da desproporção entre homens e mulheres no curso de Direito, Lygia Fagundes é quem nos oferece seu próprio testemunho: “Quando eu entrei na universidade, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, éramos seis ou setes mocinhas e quatrocentos rapazes”.